domingo, 12 de setembro de 2010

O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil

O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1995

Fichamento:

Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados com escravos. Povo novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. (p. 19)

Essa unidade básica não significa, porém, nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. A ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meio ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando formas diferenciadas de produção, que conduziram a especializações funcionais e aos seus correspondentes gêneros de vida. E por último, a imigração, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente europeus, árabes e japoneses. (p. 21)

Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros, etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população (p. 21)

O povo-nação surge no Brasil da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. Esse livro é um esforço para contribuir ao atendimento desse reclamo de lucidez. (p. 26)

A expansão do domínio português terra adentro, na constituição do Brasil, é obra dos brasilíndios ou mamelucos. Gerados por pais brancos, a maioria deles lusitanos, sobre mulheres índias, dilataram o domínio português exorbitando a dação de papel das Tordesilhas, excedendo a tudo que se podia esperar. (p. 106)

Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis horrorizados com a bruteza e desumanidade dessa gente castigadora de seu gentio materno. O termo originalmente se referia a uma casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais, para criar e adestrar em suas casas-criatórios, onde desenvolviam o talento que acaso tivessem. Seriam janízaros, se prometessem fazer-se ágeis cavaleiros de guerra, ou xipaios, se covardes e se servissem melhor para policiais e espiões. Castrados, serviriam como eunucos nos haréns, se não tivessem outro mérito. Mas podiam alcançar a alta condição de mamelucos se revelassem talento para exercer a mando e a suserania islâmica sobre a gente de que foram tirados. Os brasilíndios ou mamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeições drásticas. A dos pais, com quem queriam identificar-se, mas que os viam com impuros filhos da terra, aproveitavam bem seu trabalho enquanto meninos e rapazes e, depois, os integravam a suas bandeiras, onde muitos deles fizeram carreiras. A segunda rejeição era a do gentio materno. Na concepção dos índios, a mulher é um simples saco em que o macho deposita sua semente. Quem nasce é o filho do pai, e não da mãe, assim visto pelos índios. Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus ancestrais, que o rejeitam, o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro. (p. 107 e 108)

janízaro
1. Soldado de uma antiga guarda do sultão.

2. Fig. Guarda ou tropa que usa de violência contra o povo.

xipaio ou sipaio
1. Soldado indígena da Índia, ao serviço dos Ingleses. = sipai

2. Nas antigas colônias ultramarinas portuguesas, polícia ou militar indígena recrutado geralmente para policiamento local ou rural.

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana. Arthur Ramos (1940, 1942, 1946), prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues (1939, 1945), distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba – chamados nagô -, pelos Dahomey – designados geralmente como gegê – e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como minas -, além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros male e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área compreendida pela Angola e a Contra Costa, que corresponde ao atual território de Moçambique. (p. 113 e 114)

Graças à auto-identificação própria e nova que iam assumindo e, também, ao acesso a múltiplas inovações sócio-culturais e tecnológicas, as comunidades neobrasileiras nascentes se capacitaram a dar dois passos evolutivos. Primeiro, o de abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício das funções especializadas. Segundo, incorporar todos eles numa só identidade étnica, estruturada como um sistema socioeconômico integrado na economia mundial. (p. 121)

Apesar de terem um alto grau de auto-suficiência, dependiam de certos artigos importados, sobretudo de instrumentos de metal, sal, pólvora e outros mais, que não podiam produzir. Já não viviam, portanto, como indígenas encerrados sobre si mesmos e voltados fundamentalmente ao provimento da subsistência. Ao contrário, mantinham vínculos mercantis externos para prover-se dos referidos bens em troca do seu principal artigo de exportação, que fora, inicialmente, o pau-de-tinta, depois, o índio apresado como escravo e, afinal, a produção de alguma mercadoria de exportação. Produzir essa mercadoria passou a ser sua razão de viver. (p.121)

O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros até meados do século XVIII. De fato, o tupi, inicialmente, se expandiu mais que o português como a língua da civilização (sobre a formação da língua geral ver Cortesão 1958 e Holanda 1945). [Jaime Cortesão 1958] Com efeito, a língua geral, o nheengatu que surge no século XVI do esforço de falar o tupi com boca de português, se difunde rapidamente como a fala principal tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários. (p. 122)

Esse crescimento explosivo entra em crise em 1982, anunciando a impossibilidade de seguir crescendo economicamente sob o peso das constrições sociais que deformavam o desenvolvimento nacional. Primeiro, a estrutura agrária dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar a produção agrícola ao nível do crescimento da população, de ocupar e pagar as massas rurais, as expulsa em enormes contingentes do campo para as cidades, condenando a imensa maioria da população à marginalidade. Segundo, a espoliação estrangeira, que amparada pela política governamental fortalecera seu domínio, fazendo-se sócia da expansão industrial, jugulando a economia do país pela sucção de todas as riquezas produtivas. O Brasil alcança, desse modo, uma extraordinária vida urbana, inaugurando, provavelmente, um novo modo de ser das metrópoles. Dentro delas geram-se pressões tremendas, porque a população deixada ao abandono mantém sua cultura arcaica, mas muito integrada e criativa. Dificulta, porém, uma verdadeira modernização, porque nenhum governo se ocupa efetivamente da educação popular e da sanidade. Em nossos dias, o principal problema brasileiro é atender essa imensa massa urbana que, não podendo ser exportada, como fez a Europa, deve ser reassentada aqui. Está se alcançando, afinal, a consciência de que não é mais possível deixar a população morrendo de fome e se trucidando na violência, nem a infância entregue ao vício e à delinquência e à prostituição. O sentimento generalizado é de que precisamos tornar nossa sociedade responsável pelas crianças e anciãos. Isso só se alcançará através da garantia de pleno emprego, que supõe uma reestruturação agrária, porque ali é onde mais se podem multiplicar as oportunidades de trabalho produtivo. (p.200 e 201)

Não é tarefa fácil definir o caráter atípico de nosso processo histórico, que não se enquadra nos esquemas conceituais elaborados para explicar outros contextos e outras sequências. Com efeito, surgindo no leito do cunhadismo, estruturando-se com base numa força de trabalho africana, o Brasil se configura como uma coisa diferente de quantas haja, só explicável em seus termos, historicamente. Velhas questões institucionais, não tendo sido resolvidas nem superadas, continuam sendo os principais fatores de atraso e, ao mesmo tempo, os principais motores de uma revolução social. Com efeito, a grande herança histórica brasileira é a façanha de sua própria constituição como um povo étnica, nacional e culturalmente unificado. É, também, o malogro dos nossos esforços de nos estruturarmos solidariamente, no plano socioeconômico, como um povo que exista para si mesmo. Na raiz desse fracasso das maiorias está o êxito das minorias, que ainda estão aí, mandantes. Em seus desígnios de resguardar velhos privilégios por meio da perpetuação do monopólio da terra, do primado do lucro sobre as necessidades e da imposição de formas arcaicas e renovadas de contingenciamento da população ao papel de força de trabalho superexplorada. Como não há nenhuma garantia confiável de que a história venha a favorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos; e há, ao contrário, legítimo temor de que, também no futuro, essas minorias dirigentes conformem e deformem o Brasil segundo seus interesses; torna-se tanto mais imperativa a tarefa de alcançar o máximo de lucidez para intervir eficazmente na história a fim de reverter sua tendência secular. Esse é o nosso propósito. (p. 247, 248)

[As variantes principais da cultura brasileira] [...] são representadas pela cultura crioula, que se desenvolveu nas comunidades da faixa de terras frescas e férteis do Nordeste, tendo como instituição coordenadora fundamental o engenho açucareiro. Pela cultura caipira, da população das áreas de ocupação dos mamelucos paulistas, constituída, primeiro, através das atividades de preia de índios para a venda, depois, da mineração de ouro e diamantes e, mais tarde, com as grandes fazendas de café e a industrialização. Pela cultura sertaneja, que se funde e difunde através dos currais de gado, desde o Nordeste árido até os cerrados do Centro-Oeste. Pela cultura cabocla das populações da Amazônia, engajadas na coleta de drogas da mata, principalmente nos seringais. Pela cultura gaúcha do pastoreio nas campinas do Sul e suas duas variantes, a matuto-açoriana (muito parecida com a caipira) e a gringo-caipira das áreas colonizadas por imigrantes, predominantemente alemães e italianos. (p. 272)

Por mais anos ou gerações que permaneça numa terra, o sertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito a ser desalojado a qualquer hora, sem explicações ou direitos. Por isso, a sua casa é o rancho, em que está apenas arranchado; sua lavoura é uma roça precária, só capaz de assegurar-lhe um mínimo vital para não morrer de fome, e sua atitude é a de reserva e desconfiança, que corresponde a quem vive num mundo alheio, pedindo desculpas por existir. (p. 362)

Ao fim do século XVIII, a vida urbana ainda parecia ter viço pelo brilho artístico que alcançara, pelo requinte que adquirira, pelos hábitos mundanos que cultivara. Mas já eram expressões da decadência, que pouco depois desapareceriam também, mergulhando a todos na pobreza envergonhada em que ainda vegetam os mineiros das antigas cidades do ouro e do diamante. Nem Portugal conseguira reter a riqueza portentosa que carreara, criando com ela novas fontes de produção. Um pacto de complementaridade econômica com a Inglaterra – Tratado de Methuen - , que assegurava taxas mínimas ao vinho do Porto e ao azeite português em troca do livre comércio das manufaturas inglesas, transferia quase todo o ouro para os banqueiros londrinos. O âmbito dessa transferência pode ser avaliado em documentação da época, que indica terem alcançado até 50 mil libras semanais os pagamentos portugueses em ouro pelas importações que o reino e o Brasil faziam aos industriais ingleses. Esse ouro contribuiria para custear as guerras contra Napoleão e, sobretudo, para financiar a expansão da infra-estrutura industrial da Inglaterra. (p. 380)

Esgotado o impulso criador dos bandeirantes que se fizeram mineiros, toda a economia da vasta população do Centro-Sul entra em estagnação. Mergulha numa cultura de pobreza, reencarnando formas de vida arcaica dos velhos paulistas que se mantinham em latência, prontas a ressurgir com uma crise do sistema produtivo. A população se dispersa e se sedentariza, esforçando-se por atingir níveis mínimos de satisfação de suas necessidades. O equilíbrio é alcançado numa variante da cultura brasileira rústica, que se cristaliza como área cultural caipira. É um novo modo de vida que se difunde paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dos núcleos ancilares de produção artesanal e de mantimentos que a supriam de manufaturas, de animais de serviço e outros bens. Acaba por esparramar-se, falando afinal a língua portuguesa, por toda a área florestal e campos naturais do Centro-Sul do país, desde São Paulo, Espírito Santo e estado do Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda sobre ares vizinhas do Paraná. Desse modo, a antiga área de correrias dos paulistas velhos na preia de índios e na busca do ouro se transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por uma população extremamente dispersa e desarticulada. Em essência, exaurido o surto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava, a Paulistânia se “feudaliza”, abandonada ao desleixo da existência caipira. (p. 382 e 383)

ancilar
adj. 2 gén.

Relativo à ancila. = servil

feudo

1. Domínio nobre que um feudatário recebia (com direito de hereditariedade) de um soberano.

2. Obrigações do vassalo (feudatário) para com o senhor diretodireto do feudo (suserano).

feudatário

adj.

Nobre que recebia um feudo de outro nobre (suserano) a quem devia homenagem, fidelidade e certos serviços de armas.

Somente após a abolição, estabeleceu-se uma onda regular e ponderável de provimento de mão-de-obra européia, que, em fins do século passado [XXIX], atingiu a 803 mil trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália. (p. 399)

Os colonos eram contratados na Europa mediante o fornecimento de passagens para a família, a garantia de ajuda de manutenção no primeiro ano e o recebimento de um trato de terras para suas lavouras de subsistência. A essas condições foi necessário acrescentar-se, mais tarde, um salário anual fixo e um ganho variável segundo a produção. Como as despesas de passagem eram cobertas pelo governo, só as outras condições pesavam diretamente sobre o fazendeiro. Essas regalias, muito superiores às oferecidas ao caipira, explicam-se pela capacidade do colono – assistido pelos corpos consulares e apoiados pela imprensa de seus países – para exigir melhores condições de trabalho. Efetivamente, é o colonato imigrante que, por esse sistema, implanta o regime assalariado na vida rural brasileira, aceitando uma rigorosa disciplina de trabalho mas, em compensação, fazendo-se pagar efetivamente e pagar mais. (p. 400)

As novas fazendas estruturadas de acordo com o sistema de colonato se fazem progressivamente monoculturas, e, simultaneamente, acrescentam à plantação um elemento a mais, que é o barracão. Aí, o fazendeiro se faz comerciante para prover aos colonos de tudo que necessitam, mas também para recuperar o máximo dos salários pagos. Assim, os contratos mais vantajosos e já monetários passam a deteriorar-se para o trabalhador rural, sujeitos a duas reduções. Primeiro, a inflação que diminui substancialmente o valor dos contratos de plantio de café, geralmente de quatro anos. Segundo, a exploração nos fornecimentos feitos pelo barracão. Nessas circunstâncias o colono só conseguiria poupar à custa de uma compressão violenta de seus gastos, permanecendo a maioria deles jungida ao sistema por dívidas insaldáveis e vendo esvair-se sempre a suspirada oportunidade de se fazerem granjeiros. (p. 401)

A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas das deformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da renda nacional, da sua arraigada discriminação contra os negros escravos ou forros e contra os núcleos caipiras que lhe resistiam, bem como as massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e nessa discriminação senhorial é que devem ser procuradas as razões pelas quais o Brasil se atrasou tão gritantemente em relação aos demais países latino-americanos e a qualquer outro povo do mesmo nível de desenvolvimento, tanto na abolição da escravatura como na imposição ao Estado da obrigação de assegurar educação primária à população e na extensão aos trabalhadores rurais dos direitos de sindicalização e de greve. (p. 403)

A característica básica do Brasil sulino, em comparação com as outras áreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade cultural. Os modos de existência e de participação na vida nacional dos seus três componentes principais não só divergem largamente entre si como também com respeito às outras áreas do país. Tais são os lavradores matutos de origem principalmente açoriana, que ocupam a faixa litorânea do Paraná para o sul; os representantes atuais dos antigos gaúchos da zona de campos da fronteira rio-platense e dos bolsões pastoris de Santa Catarina e do Paraná, e, finalmente, de imigrantes europeus, que formam uma ilha na zona central, avançando sobre as duas outras áreas. (p. 408 e 409)

O Brasil sulino surge à civilização pela mão dos jesuítas espanhóis, que fazem florescer no atual território gaúcho de missões a principal expressão de sua república cristã-guaranítica. [...] Os jesuítas criaram um desses raros modelos utópicos de reorganização intencional da vida social que efetivamente viabilizaram novas formas de existência humana. Apesar de sua inspiração anti-gentílica, o modelo de estrutura social que criaram se caracterizava pelo alto sentido de responsabilidade social diante das populações indígenas que aliciavam. Ao contrário da formação colonial-escravista, que tratava o índio como um fator energético para ser desgastado na produção mercantil, o modelo jesuítico buscava assegurar-lhe uma existência própria dentro de uma comunidade que existia para si, isto é, que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência e desenvolvimento. (p. 409 e 410)

A concentração de grandes massas de indígenas deculturados, uniformizados culturalmente e motivados para o trabalho disciplinado teve o efeito de desencadear sobre as missões toda a fúria dos mamelucos paulistas que as viam como enorme depósito de índios facilmente preáveis. Assim se liquidaram as primeiras missões pela escravização dos catecúmenos e sua venda aos engenhos do Nordeste. Por outro lado, o êxito mercantil das novas missões, seu caráter de modo alternativo à colonização em curso provocou invejas e cobiças locais e também na própria metrópole, acabando por provocar a expulsão da Companhia de Jesus. (p. 410)

Nos últimos anos, surgiu na zona colonial um desenvolvimento industrial intensivo, originado no artesanato familiar, que já alcançou a estatura de uma rede de instalações fabris de nível médio, dedicado à produção metalúrgica, à indústria química, de couros, cerâmica e vidreira. Algumas antigas vilas coloniais gringas transformaram-se, nesse processo, em importantes centros industriais regionais, como Caxias, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Blumenau, Joinville e Itajaí. (p. 442)

Apenas os japoneses, por conduzirem uma marca racial diferenciadora, tendiam a não ver reconhecida sua assimilação, mesmo quando completada, como ocorre com aquelas que se urbanizaram. Essa característica, que foi penosa enquanto os brasileiros identificavam os japoneses como gente mestiça e atrasada, foi perdendo esse conteúdo em face do prestígio crescente do Japão e do êxito cultural e econômico dos nisseis brasileiros. Com efeito, eles constituem, provavelmente, o grupo imigrante que mais rapidamente ascendeu e se modernizou. Não é raro que o neto do camponês nipônico seja engenheiro, industrial ou executivo das grandes empresas japonesas instaladas ultimamente no país, e que sua neta seja professora ou doutora. (p. 444)

Um trecho interessante do livro: 1808 - de Laurentino Gomes

GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007

Na prática, o cenário para os ingleses era ainda melhor do que prometia o embaixador [português na Inglaterra D. Domingos de Sousa Coutinho, que era irmão do homem forte do novo ministério organizado por D. João no Rio de Janeiro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares]. Como a Europa estava ocupada pelos exércitos de Napoleão, naquele momento nenhum outro povo europeu tinha condições de comercializar com o Brasil. Vencedora da Batalha de Trafalgar, em 1805, na qual as forças combinadas da Espanha e da França tinham sido aniquiladas pela esquadra de Lord Nelson, a Inglaterra era a única potência com livre trânsito nos mares. (p. 182 e 183)

Em 1808, o recém-aberto mercado brasileiro tornou-se um alvo natural dos interesses dessa florescente potência mundial. Depois de escapar de Napoleão sob a proteção da marinha britânica, D. João devia imensos favores à Inglaterra. Sua dependência em relação aos britânicos era tão grande que, na etapa da viagem entre Salvador e Rio de Janeiro, confiou ao capitão James Walker, comandante do navio Bedford, 84 cofres com parte dos tesouros reais que vinha trazendo de Lisboa. Mais tarde, já no Rio de Janeiro, presenteou o contra-almirante Sidney Smith, comandante da esquadra britânica, com uma chácara na Praia de Santa Luzia, em agradecimento pelos serviços prestados. A propriedade incluía uma bonita casa de campo, terras e vários escravos para cultivá-las. (p. 185 e 186)